sexta-feira, 25 de abril de 2014

As evoluções de Darwin

No livro Além de Darwin (Editora Globo, 1ª reimpressão de 2011), o jornalista e escritor Reinaldo José Lopes escreve que "nenhuma população de seres vivos fica simplesmente 'parada no tempo', 'sem evoluir'". (pág. 188)

Esta ideia serve para outros temas. Inclusive o da própria reflexão científica. Não podemos congelar Darwin. Novas descobertas nos levam para além do que já foi descrito e afirmado. E este livro, que de certo modo continua crescendo e se aperfeiçoando nos artigos que Reinaldo publica em seu blog, mostra isso mesmo: o darwinismo está sujeito a aprimoramentos.

O legal do livro de Reinaldo está em falar de ciência com precisão e leveza. Linguagem de jornalista do nosso tempo, bom humor sério, flexibilidade rigorosa. Gostei. Aprendi. 

Outra: Reinaldo é católico e convive muito bem com a pesquisa científica mais exigente do momento. Trabalha com a biologia evolutiva sem medo de desafinar na fé. Divulga conhecimento com conhecimento de causa e efeito, percebendo convergências. É possível defender racionalmente a hipótese de que Deus guiou o fascinante processo de nossa humanização. O autor conversou com Jô Soares sobre o livro.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Francisco de Assis e de hoje

A editora Sextante acaba de lançar Em busca de Francisco, de Ian Morgan Cron. O autor é pastor protestante. No romance, há também um pastor, Chase Falson, que sofre profunda crise de fé. Ao conhecer a história e os ensinamentos de Francisco de Assis, Chase faz uma corajosa revisão de vida e redescobre os valores cristãos essenciais.

Fiquei surpreso com a abordagem, mas Francisco é um santo que inspira a todos, e tem a "mania" de ignorar barreiras e preconceitos. De certo modo, ele também protestou contra os erros que mais tarde incomodariam a Lutero. Francisco já foi chamado o "primeiro depois do Único", um cristão que viveu radicalmente a mensagem de Jesus. E é esta mensagem, afinal, o que deve unir todos os que admiram o Único Pastor, mesmo que estejam em tempos, lugares, meios culturais ou grupos religiosos diferentes.

A peregrinação de Chase tem algo de reflexão teológica e espiritual. O livro se enquadra como ficção, mas tem uma bibliografia no final, na qual estão incluídos autores católicos como Leonardo Boff, Gilbert Chesterton, Thomas Merton, Jean Vanier, e o próprio papa João Paulo II.

Há momentos em que o personagem-narrador escreve para Francisco, relatando sua busca:

Caro Francisco,
Eu achava que sua obsessão pela pobreza fizesse parte daquele estilo medieval de catolicismo: monges fanáticos e ascéticos flagelando o próprio corpo e passando fome como forma de penitência. Mas eu estava enganado. Você escolheu uma vida de pobreza porque ela criava as condições ideais para o amadurecimento da sua alma. Confesso que passei minha vida inteira colaborando com as forças do materialismo e do consumismo. Será que é possível viver nos Estados Unidos e não ser assim? Se Angelina tiver razão, no entanto, estou pagando um preço espiritual muito alto por isso. (pág. 164)

No site da Editora Sextante estão disponíveis as primeiras 30 páginas do romance: http://www.esextante.com.br/publique/media/Em%20busca%20de%20Francisco_Trecho.pdf 

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Gamificação

O neologismo "gamificação" procura dar conta de uma certa forma de viver, conviver e trabalhar. O modus ludicus. Viver como se em estado de jogo estivéssemos. Haverá mais engajamento e motivação, aprendizado relevante, mais sociabilização e busca humanizada de resultados.

Se não podemos evitar totalmente a burocracia, as rotinas, as cobranças, por que não fazermos disso que nos esmaga um momento de divertimento, uma forma de elevação? Antes que o tédio nos mate, matemos o tédio adotando os jogos como forma de acessar o repetitivo, o obrigatório, o cansativo.

Estas são algumas breves considerações extraídas do livro Gamification, Inc.: como reinventar empresas a partir de jogos, lançado em 2013, e já em sua segunda edição. Saiu pela MJV Press, editora da MJV Tecnologia & Inovação. Quatro autores: Bruno Medina, Maurício Vianna, Samara Tanaka e Ysmar Vianna.

Estamos na Idade Mídia. Quem nasceu no século XXI não tem necessidade de distinguir o on-line do off-lline. Os que têm 30 ou mais ainda desenham essa fronteira. Quem hoje, com 12 anos de idade, assiste à TV e ao mesmo tempo conversa pelo WhatsApp com os amigos, está para além dessa diferença. Porque essa diferença não existe mais...

Milhares de processos podem ser reinterpretados à luz da gamificação. A dinâmica profissional ganha beleza e leveza. O aprender ganha atratividade. Avançar por tentativa e erro deixa de ser fonte de medo, culpa e punição. Avançar torna-se atividade divertida.

É evidente que ainda não estamos preparados para essa realidade. A maioria das empresas e de tantas outras instituições tem medo do jogo. Acham que o brincar nega a responsabilidade. Não sabem que brincadeira é coisa muito mais séria do que muitas coisas sérias que são, na verdade, ridículas.

terça-feira, 1 de abril de 2014

Jacques Le Goff, historiador e ensaísta

Faleceu hoje um dos maiores medievalistas franceses, Jacques Le Goff (1924-2014). A riqueza e a complexidade da Idade Média aparecem com detalhes em seus textos de corte ensaístico. Escrevia com gosto e dá gosto ler o que escreveu. Mesmo os seus críticos mais ferrenhos acabavam por reconhecer este seu talento: "ler Le Goff é sempre um vivo prazer".

O historiador que vai às fontes encontra trevas e luzes. Não há um tempo absolutamente monstruoso ou absolutamente brilhante. Só a ideologia cega vende esse tipo de crença. Desgraça, beleza, veneno, pureza, traição e glória há em todos os períodos do tempo humano. Misturados.

Vou à minha estante e recolho dois livros de Le Goff: A Idade Média e o dinheiro (Civilização Brasileira, 2014) e São Francisco de Assis (Record, 2012).

Do primeiro, transcrevo esse trecho:

[São Luís] conheceu e guardou a definição da moeda por Isidoro de Sevilha: moneta vem de monere, "advertir", porque põe em guarda contra toda espécie de fraude no metal ou no peso. É uma luta contra a "má" moeda, a moeda falsa ou falsificada (defraudata), um esforço em prol da "boa" moeda, a moeda "sã e leal". Graças a essa moeda, que recebe em quantidade crescente, o rei pode satisfazer um dos seus desejos que, como se verá, vai assumir na religião cristã um lugar ainda mais importante no século XIII, a caridade. O rei é um grande distribuidor de esmolas e, se uma parte dessas esmolas é distribuída in natura, outra o é em dinheiro. Trata-se de outro domínio no qual se pode observar o aumento da circulação das moedas no século XIII.

Do segundo, escolho a passagem abaixo:

Meio religioso, meio leigo, nas cidades em pleno desenvolvimento, nas estradas e no retiro solitário, no florescimento da civilização urbana combinado com uma nova prática da pobreza, da humildade e da palavra, à margem da Igreja mas sem cair na heresia, revoltado sem niilismo, ativo naquele ponto mais fervilhante da cristandade, a Itália central, entre Roma e a solidão de Alverne, Francisco desempenhou um papel decisivo no impulso das novas ordens mendicantes difundindo um apostolado voltado para a nova sociedade cristã, e enriqueceu a espiritualidade com uma dimensão ecológica que fez dele o criador de um sentimento medieval da natureza expresso na religião, na literatura e na arte.

São esses parágrafos pequenos aperitivos para quem quiser alimentar-se de um historiador que sabia ser escritor.

quarta-feira, 26 de março de 2014

Diálogos sem-noção na livraria

Viver entre livros é para certas pessoas (quisera poder dizer "para todas as pessoas") uma experiência paradisíaca. Mas nem sempre. Os livreiros podem testemunhar. Alguns fregueses sem-noção fazem perguntas, consultas e pedidos que tiram um santo do sério.

O jeito é rir e fazer rir para não transformar em inferno o paraíso. Como no livro de Lilian Dorea (seu nome na web é Hillé Puonto), [manual prático de bons modos em livrarias], pela Seoman, de 2013. No Facebook: http://migre.me/ivw3r

Em vez de praticar a grosseria... ria! O lema do livreiro inteligente, diz a autora, é: "Rir para não cortar os pulsos". Os diálogos sem-noção recriados mostram que a falta de cultura tem salvação. A salvação é pegar na deixa, como nos desafios dos cantadores nordestinos: retomar a poesia com o final do verso anterior. O livreiro, desafiado, torna-se educador.

Leitores que fazem consultas sem-noção vão aprendendo como se movimentar no labirinto das estantes. Amostra grátis (pág. 152):

LIVREIRA: Livraria X, boa tarde.

FREGUESA: Boa tarde, é da seção de Mitologia?


LIVREIRA: Oi, boa tarde. Não, mas eu posso ajudar a senhora.


FREGUESA: Ai, filha, sabe o que é?


LIVREIRA: Hum.


FREGUESA: Então, estou procurando um dicionário de Mitologia, mas não lembro qual é.

LIVREIRA: Hum.


FREGUESA: Você pode olhar os que têm aí na livraria e separar todos que tiverem a palavra "centauro". Daí mais tarde eu dou um pulo aí para dar uma olhada.





segunda-feira, 17 de março de 2014

O presente era o futuro

É aquela espécie de livro que a gente compra sabendo que será difícil ler de cabo a rabo. São mais de 700 páginas. Não é um romance superficial, com atrativos de linguagem ou de temática, embora, por outro lado, converse com qualquer não especialista. É um livro sobre questões ligadas à antropologia filosófica e à sociologia. Pessoas comuns podem ler. Todos somos pessoas comuns...

O autor é o sociólogo italiano Domenico de Masi. Há quem diga que ele não é um intelectual. Que é apenas um bom vendedor de livros. Essa acusação recai sobre outros escritores do nosso tempo que divulgam suas ideias com amplidão (Pierre Lévy, Edgar Morin e mesmo o nosso Rubem Alves). O livro de Domenico de Masi que comprei (sabendo que será difícil ler de cabo a rabo, mas vou tentar) é O futuro chegou: modelos de vida para uma sociedade desorientada (pela Casa da Palavra, 2014, com tradução de Marcelo Costa Sievers).

A ideia de que vivemos um tempo déboussolé, "sem bússola", sem norte (estamos desnorteados), sem oriente (estamos desorientados), é o pano de fundo. Precisamos fazer escolhas, portanto, redefinir diretrizes, descobrir novos caminhos, ou novas formas de caminhar nos caminhos de sempre. Que modelos existem (ou existiram?) e podem ser retomados ou aperfeiçoados? Ou descartados? Existe um modelo brasileiro que possa inspirar projetos, animar atitudes, impulsionar gestos?

O autor nos apresenta (com leveza, mas com seriedade, é o que penso) os modelos indiano, chinês, japonês, o modelo clássico, o modelo hebraico, o modelo católico, o modelo muçulmano, o modelo protestante, o iluminista, o liberal, o capitalista, o socialista, o comunista, o pós-industrial... e o modelo brasileiro (ele se apoia em análises feitas por Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro, Roberto DaMatta, Sérgio Buarque de Holanda).

Mais não seja, a leitura deste livro nos mostrará diferentes mapas, e querer conhecê-los melhor pode sugerir leituras mais específicas.

terça-feira, 11 de março de 2014

Uma calma, uma alma

O escritor Rodrigo Naves navega mais pelos mares das artes plásticas. Este é seu trunfo. E é professor. Sua ficção se produz com atenção e cuidado e me transmite esse tom quase professoral. Nota-se isso. Mas A calma dos dias (Cia. das Letras, 2014), recém-lançado, pode nos inquietar.

Seus contos, prosas curtas e densas, meio tensas, apesar da aparente calma do dia a dia. E há poesia disfarçada, como este verso perdido dentro de um miniconto ("Horário de verão"): "Trata-se do período do ano em que as manhãs ocorrem duas vezes". Parece banal. Contudo, insinua a necessidade da contemplação.

Gostei de ler "Foca", em que o narrador-protagonista sai de casa equilibrando o mundo na ponta do nariz. E no final do dia, ou da vida, faz essa pergunta que bem pode ser mote excelente para outras reflexões: "A quem sirvo quando me esqueço?"

E vou reler algumas vezes este conto, "Teoria do cão", até ficar mais calmo:

Jacobina era um mendigo do bairro a quem me afeiçoara havia muitos anos. Todos os dias trocávamos algumas palavras: conselhos recíprocos, novidades, palpites sobre o tempo. Dava-lhe dinheiro com regularidade, que ele aceitava quase como o pagamento de uma dívida. Ele vivia com Coronel, um vira-lata em cuja pelagem indefinida convergiam muitas linhagens de cães. O bicho não era dado a expansões, mas aos poucos cedeu a meus afagos. Jacobina e Coronel passavam o tempo todo juntos. À noite dormiam colados um ao outro, em meio ao ninho de papelão e cobertores baratos que os agasalhava.

A morte de Jacobina não me deixou escolha: levei Coronel para casa e procurei ocupar o lugar que o mendigo tivera em sua vida. O animal recusou-se terminantemente a dormir na área de serviço do apartamento: arranhava a porta, gania. Resolvi então arrumar sua cama ao pé da minha. Por uns dias ele aceitou a nova situação. Um dia, despertei com o cachorro a meu lado. E não houve jeito de reconduzi-lo ao lugar anterior.

O pior, porém, ainda estava por vir. Em pouco tempo Coronel teimou em voltar para o chão e não sossegou enquanto não lhe fizesse companhia. Soube responder estoicamente às novas circunstâncias e em poucos dias já me sentia à vontade na acomodação precária.

Poucos meses depois comecei a perceber mudanças no comportamento de meu companheiro. Sentia-o intranquilo, como se os limites de meu apartamento o oprimissem. O animal não tinha sossego e rodava pelos ambientes à procura de uma saída. Uma manhã, ao retornarmos do passeio matinal, mal pude contê-lo. Coronel queria voltar à rua de todo modo. Tornara-se até violento.


Não foi uma escolha fácil. Por fim cedi a seus apelos. Hoje vivemos sem nada, à mercê da caridade alheia. Tratamos com afeto aqueles que nos ajudam. Não me arrependo um só momento pela decisão tomada. Entendo o ar de compaixão dos homens e mulheres que zelam por nós. E nossas faces maltratadas pelo tempo quase não deixam transparecer o que sentimos por eles.

segunda-feira, 3 de março de 2014

Economia e humanismo

Um bom "esporte": descobrir autores praticamente esquecidos e procurar recontextualizá-los. É o caso do economista tcheco Eugen Loebl (1907-1987). Alguns livros seus foram traduzidos para o português entre as décadas de 1970 e 1980. Sua proposta humanista, crítica, baseada em pesquisa mas também em prática política (exerceu funções importantes em seu país, antes de exilar-se nos Estados Unidos), não agradava nem aos capitalistas, nem aos socialistas, nem aos comunistas. Foi um pensador independente, e talvez por isso (indevidamente) abandonado.

Já escrevia Loebl no início do seu Libertação da pobreza (pág. 1): 

Há hoje cerca de 35 milhões de pessoas vivendo abaixo do nível de pobreza nos Estados Unidos, a nação mais rica do mundo. O padrão de vida das pessoas sob o sistema econômico norte-americano é o mais alto do mundo. Não obstante, é visível a fragilidade desse sistema no qual, em meio a tal riqueza, 12,5% da população vivem na pobreza.

No Brasil, a maior e mais importante nação da América do Sul, há também grande riqueza. No entanto, numa população de aproximadamente 130 milhões, 75% vivem num nível de pobreza incomparavelmente mais baixo que esse nível nos Estados Unidos.

No mesmo livro, explica que a União Soviética praticava o "capitalismo absoluto" (págs. 22-3):

Nós resumiríamos a diferença entre o modelo marxista de uma economia planificada e a livre-iniciativa do seguinte modo: a economia soviética como um todo é, na verdade, uma única empresa. Ela é gerada por uma diretoria - o centro de planejamento. As empresas estatais são, todas, apenas algo como filiais desse grande órgão central - são orientadas pela mesma filosofia. [...] Qualidades humanas, talentos humanos - mentais e físicos - simplesmente não contam. [...] Não se pode nem mesmo chamar a essa economia de "capitalismo de Estado" porque essa gigantesca empresa pertence a um único dono - o Politburgo, o comando do Partido.

Segundo Loebl, o marxismo subestimava a criatividade humana e, por isso, também não se demonstrou uma boa solução para o problema da pobreza.

Libertação da pobreza foi publicado no Brasil pelas Edições Excelsior em 1985. Outro livro de Loebl, A sociedade responsável (em coautoria com o empresário tcheco Stephen Roman), saiu pela Editora Mestre Jou (1981). O instigante A humanoeconomia: como poderemos fazer com que a economia nos sirva e não nos destrua surgiu em 1976, pela José Olympio.

Na conclusão do livro A sociedade responsável, Loebl e seu compatriota Roman parecem estar falando do nosso tempo. Passaram-se mais de 30 anos, e suas palavras e sua perplexidade são atuais (pág. 203):

Vivemos hoje em uma das sociedades mais refinadas que o homem pôde edificar em todos os tempos. Atingimos as maiores alturas de inteligência e alcançamos mais conhecimentos do que em qualquer período anterior da história. Gostaríamos de acreditar que a nossa civilização é a maior até hoje conhecida. Entretanto, vivemos em medo constante, ansiedade constante, agitação constante. Por que será que o homem, com toda a experiência e conhecimentos que adquiriu ao longo dos séculos, é incapaz de produzir uma sociedade que elimine essas forças negativas? Por que é que parecem aumentar em vez de diminuir?