quarta-feira, 26 de março de 2014

Diálogos sem-noção na livraria

Viver entre livros é para certas pessoas (quisera poder dizer "para todas as pessoas") uma experiência paradisíaca. Mas nem sempre. Os livreiros podem testemunhar. Alguns fregueses sem-noção fazem perguntas, consultas e pedidos que tiram um santo do sério.

O jeito é rir e fazer rir para não transformar em inferno o paraíso. Como no livro de Lilian Dorea (seu nome na web é Hillé Puonto), [manual prático de bons modos em livrarias], pela Seoman, de 2013. No Facebook: http://migre.me/ivw3r

Em vez de praticar a grosseria... ria! O lema do livreiro inteligente, diz a autora, é: "Rir para não cortar os pulsos". Os diálogos sem-noção recriados mostram que a falta de cultura tem salvação. A salvação é pegar na deixa, como nos desafios dos cantadores nordestinos: retomar a poesia com o final do verso anterior. O livreiro, desafiado, torna-se educador.

Leitores que fazem consultas sem-noção vão aprendendo como se movimentar no labirinto das estantes. Amostra grátis (pág. 152):

LIVREIRA: Livraria X, boa tarde.

FREGUESA: Boa tarde, é da seção de Mitologia?


LIVREIRA: Oi, boa tarde. Não, mas eu posso ajudar a senhora.


FREGUESA: Ai, filha, sabe o que é?


LIVREIRA: Hum.


FREGUESA: Então, estou procurando um dicionário de Mitologia, mas não lembro qual é.

LIVREIRA: Hum.


FREGUESA: Você pode olhar os que têm aí na livraria e separar todos que tiverem a palavra "centauro". Daí mais tarde eu dou um pulo aí para dar uma olhada.





segunda-feira, 17 de março de 2014

O presente era o futuro

É aquela espécie de livro que a gente compra sabendo que será difícil ler de cabo a rabo. São mais de 700 páginas. Não é um romance superficial, com atrativos de linguagem ou de temática, embora, por outro lado, converse com qualquer não especialista. É um livro sobre questões ligadas à antropologia filosófica e à sociologia. Pessoas comuns podem ler. Todos somos pessoas comuns...

O autor é o sociólogo italiano Domenico de Masi. Há quem diga que ele não é um intelectual. Que é apenas um bom vendedor de livros. Essa acusação recai sobre outros escritores do nosso tempo que divulgam suas ideias com amplidão (Pierre Lévy, Edgar Morin e mesmo o nosso Rubem Alves). O livro de Domenico de Masi que comprei (sabendo que será difícil ler de cabo a rabo, mas vou tentar) é O futuro chegou: modelos de vida para uma sociedade desorientada (pela Casa da Palavra, 2014, com tradução de Marcelo Costa Sievers).

A ideia de que vivemos um tempo déboussolé, "sem bússola", sem norte (estamos desnorteados), sem oriente (estamos desorientados), é o pano de fundo. Precisamos fazer escolhas, portanto, redefinir diretrizes, descobrir novos caminhos, ou novas formas de caminhar nos caminhos de sempre. Que modelos existem (ou existiram?) e podem ser retomados ou aperfeiçoados? Ou descartados? Existe um modelo brasileiro que possa inspirar projetos, animar atitudes, impulsionar gestos?

O autor nos apresenta (com leveza, mas com seriedade, é o que penso) os modelos indiano, chinês, japonês, o modelo clássico, o modelo hebraico, o modelo católico, o modelo muçulmano, o modelo protestante, o iluminista, o liberal, o capitalista, o socialista, o comunista, o pós-industrial... e o modelo brasileiro (ele se apoia em análises feitas por Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro, Roberto DaMatta, Sérgio Buarque de Holanda).

Mais não seja, a leitura deste livro nos mostrará diferentes mapas, e querer conhecê-los melhor pode sugerir leituras mais específicas.

terça-feira, 11 de março de 2014

Uma calma, uma alma

O escritor Rodrigo Naves navega mais pelos mares das artes plásticas. Este é seu trunfo. E é professor. Sua ficção se produz com atenção e cuidado e me transmite esse tom quase professoral. Nota-se isso. Mas A calma dos dias (Cia. das Letras, 2014), recém-lançado, pode nos inquietar.

Seus contos, prosas curtas e densas, meio tensas, apesar da aparente calma do dia a dia. E há poesia disfarçada, como este verso perdido dentro de um miniconto ("Horário de verão"): "Trata-se do período do ano em que as manhãs ocorrem duas vezes". Parece banal. Contudo, insinua a necessidade da contemplação.

Gostei de ler "Foca", em que o narrador-protagonista sai de casa equilibrando o mundo na ponta do nariz. E no final do dia, ou da vida, faz essa pergunta que bem pode ser mote excelente para outras reflexões: "A quem sirvo quando me esqueço?"

E vou reler algumas vezes este conto, "Teoria do cão", até ficar mais calmo:

Jacobina era um mendigo do bairro a quem me afeiçoara havia muitos anos. Todos os dias trocávamos algumas palavras: conselhos recíprocos, novidades, palpites sobre o tempo. Dava-lhe dinheiro com regularidade, que ele aceitava quase como o pagamento de uma dívida. Ele vivia com Coronel, um vira-lata em cuja pelagem indefinida convergiam muitas linhagens de cães. O bicho não era dado a expansões, mas aos poucos cedeu a meus afagos. Jacobina e Coronel passavam o tempo todo juntos. À noite dormiam colados um ao outro, em meio ao ninho de papelão e cobertores baratos que os agasalhava.

A morte de Jacobina não me deixou escolha: levei Coronel para casa e procurei ocupar o lugar que o mendigo tivera em sua vida. O animal recusou-se terminantemente a dormir na área de serviço do apartamento: arranhava a porta, gania. Resolvi então arrumar sua cama ao pé da minha. Por uns dias ele aceitou a nova situação. Um dia, despertei com o cachorro a meu lado. E não houve jeito de reconduzi-lo ao lugar anterior.

O pior, porém, ainda estava por vir. Em pouco tempo Coronel teimou em voltar para o chão e não sossegou enquanto não lhe fizesse companhia. Soube responder estoicamente às novas circunstâncias e em poucos dias já me sentia à vontade na acomodação precária.

Poucos meses depois comecei a perceber mudanças no comportamento de meu companheiro. Sentia-o intranquilo, como se os limites de meu apartamento o oprimissem. O animal não tinha sossego e rodava pelos ambientes à procura de uma saída. Uma manhã, ao retornarmos do passeio matinal, mal pude contê-lo. Coronel queria voltar à rua de todo modo. Tornara-se até violento.


Não foi uma escolha fácil. Por fim cedi a seus apelos. Hoje vivemos sem nada, à mercê da caridade alheia. Tratamos com afeto aqueles que nos ajudam. Não me arrependo um só momento pela decisão tomada. Entendo o ar de compaixão dos homens e mulheres que zelam por nós. E nossas faces maltratadas pelo tempo quase não deixam transparecer o que sentimos por eles.

segunda-feira, 3 de março de 2014

Economia e humanismo

Um bom "esporte": descobrir autores praticamente esquecidos e procurar recontextualizá-los. É o caso do economista tcheco Eugen Loebl (1907-1987). Alguns livros seus foram traduzidos para o português entre as décadas de 1970 e 1980. Sua proposta humanista, crítica, baseada em pesquisa mas também em prática política (exerceu funções importantes em seu país, antes de exilar-se nos Estados Unidos), não agradava nem aos capitalistas, nem aos socialistas, nem aos comunistas. Foi um pensador independente, e talvez por isso (indevidamente) abandonado.

Já escrevia Loebl no início do seu Libertação da pobreza (pág. 1): 

Há hoje cerca de 35 milhões de pessoas vivendo abaixo do nível de pobreza nos Estados Unidos, a nação mais rica do mundo. O padrão de vida das pessoas sob o sistema econômico norte-americano é o mais alto do mundo. Não obstante, é visível a fragilidade desse sistema no qual, em meio a tal riqueza, 12,5% da população vivem na pobreza.

No Brasil, a maior e mais importante nação da América do Sul, há também grande riqueza. No entanto, numa população de aproximadamente 130 milhões, 75% vivem num nível de pobreza incomparavelmente mais baixo que esse nível nos Estados Unidos.

No mesmo livro, explica que a União Soviética praticava o "capitalismo absoluto" (págs. 22-3):

Nós resumiríamos a diferença entre o modelo marxista de uma economia planificada e a livre-iniciativa do seguinte modo: a economia soviética como um todo é, na verdade, uma única empresa. Ela é gerada por uma diretoria - o centro de planejamento. As empresas estatais são, todas, apenas algo como filiais desse grande órgão central - são orientadas pela mesma filosofia. [...] Qualidades humanas, talentos humanos - mentais e físicos - simplesmente não contam. [...] Não se pode nem mesmo chamar a essa economia de "capitalismo de Estado" porque essa gigantesca empresa pertence a um único dono - o Politburgo, o comando do Partido.

Segundo Loebl, o marxismo subestimava a criatividade humana e, por isso, também não se demonstrou uma boa solução para o problema da pobreza.

Libertação da pobreza foi publicado no Brasil pelas Edições Excelsior em 1985. Outro livro de Loebl, A sociedade responsável (em coautoria com o empresário tcheco Stephen Roman), saiu pela Editora Mestre Jou (1981). O instigante A humanoeconomia: como poderemos fazer com que a economia nos sirva e não nos destrua surgiu em 1976, pela José Olympio.

Na conclusão do livro A sociedade responsável, Loebl e seu compatriota Roman parecem estar falando do nosso tempo. Passaram-se mais de 30 anos, e suas palavras e sua perplexidade são atuais (pág. 203):

Vivemos hoje em uma das sociedades mais refinadas que o homem pôde edificar em todos os tempos. Atingimos as maiores alturas de inteligência e alcançamos mais conhecimentos do que em qualquer período anterior da história. Gostaríamos de acreditar que a nossa civilização é a maior até hoje conhecida. Entretanto, vivemos em medo constante, ansiedade constante, agitação constante. Por que será que o homem, com toda a experiência e conhecimentos que adquiriu ao longo dos séculos, é incapaz de produzir uma sociedade que elimine essas forças negativas? Por que é que parecem aumentar em vez de diminuir?