sábado, 31 de dezembro de 2011

Um 2012 de muitas e intensas leituras!

O grande Goethe escreveu que "todo vivente forma em torno de si uma atmosfera".*

Quando as pessoas se aproximam de nós (e nossos textos) sentem, portanto, os ventos das ideias, o ar puro dos argumentos, as tempestades das emoções, os relâmpagos da ansiedade, os trovões do medo, a escuridão da saudade, o crepúsculo das paixões, a aurora de novos projetos, as nuvens dos receios e a brisa do silêncio...


Somos pessoas com diferentes climas e estações, calorosas e frias, outonais e primaveris, chuvosas e áridas, por vezes sufocantes, por vezes amenas.
Que a nossa atmosfera pessoal, mesmo sob a pressão do trabalho e bombardeada pela previsão de catástrofes, seja sempre um espaço para a verdade e para a esperança!


Desejo a você um 2012 de muitas e intensas leituras!
___________________
Johann W. GOETHE, em Máximas e reflexões,  ponto  47. No original: “Alles Lebendige bildet eine Atmosphäre um sich her.”

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Feliz Natal e boas leituras!

Feliz Natal e boas leituras sempre, é o que desejo a quem passar por aqui. A charge de Laerte apareceu hoje, na Folha de S.Paulo:



segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

O reencontro com a leitura

O filme Minhas tardes com Margueritte (2010) é um canto ao reencontro com a leitura. O título em francês — La tête en friche — fala de uma cabeça baldia, uma cabeça sem cultivo e sem cultura, como terreno abandonado.

O terreno abandonado foi a inteligência do personagem quando menino. O professor de leitura massacrava o garoto em sala de aula. E a mãe massacrava o garoto em casa. O garoto Germain cresceu e se tornou um homem sem leitura, mas com capacidades de sobra. Gérard Depardieu está ótimo. Seus encontros literários com a velhinha de 95 anos são inesquecíveis. O filme é para rir e para chorar. Excelente chance didática para falar sobre leitura, para além da obrigatoriedade seca dos vestibulares e testes de múltipla desescolha...

A leitura em voz alta, a imaginação viva, o leitor como cocriador, a literatura como instrumento de autoconhecimento, como ocasião de encontro entre as pessoas — imperdível.

Ah, o filme é uma adaptação do romance, com esse título, de Marie-Sabine Roger (1957 - ), autora desconhecida no Brasil.

E um delicioso aperitivo:

domingo, 11 de dezembro de 2011

Um rascunho todo mês

Todo mês recebo em casa rascunho, de Curitiba. A edição deste mês de dezembro traz um excelente artigo de Affonso Romano de Sant'Anna sobre o "excesso" de livros e a falta de leitores. O poeta observa como é diferente nosso hábito de ler do hábito de beber. O governo compra livros, mas é o cidadão que banca a cerveja.

E outras matérias no rascunho, sobre literatura infantil, poesia, tradução, mulheres e a profissão literária, um bom artigo de José Castello sobre Kerouac e Tchekhov, uma resenha sobre Marcelino Freire, enfim, 32 páginas de jornal dedicadas à literatura.

É curioso que a publicação ainda não adote as regras do novo Acordo Ortográfico, regras que ano que vem passam a valer 100%. Mas essa resistência revela, por outro lado, uma vontade de ir contra a corrente, uma rebeldia.

O site do Jornal Rascunho (ligado à Gazeta do Povo) vale a visita.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Ecologia humana

O médico e escritor francês David Servan-Schreiber faleceu neste ano de 2011, vítima de câncer. É dele o livro Anticâncer (Fontanar, 2008), que projetou o autor, sobretudo nos Estados Unidos.

Todos têm um câncer dentro de si, à espreita. O estresse, a alimentação errada, a depressão, o ácido da ansiedade corroendo a alma deflagram a doença. David era vítima e herói, cobaia de si mesmo, pesquisador incansável das forças vivas e curativas que também nos habitam.

Escreveu anteriormente Curar (Sá Editora, 2004). Um livro de sabedoria e ciência. E de simplicidade, ainda que lidando com esse "monstro incompreensível" (Pascal) que cada ser humano é. David mistura investigação objetiva, autoconhecimento, confissão pessoal, abertura para o incompreensível. São condimentos importantes no amadurecimento.

E o câncer acabou vencendo? No último livro — Podemos dizer adeus mais de uma vez —, publicado pela Fontanar (2011), encontramos um ser humano, com todos os seus erros, inseguranças e uma imensa capacidade de amar. Venceu o ser humano. Venceu um modo de viver e pensar mais humano e humanizador. Venceu a ecologia humana.

A tradução do título faz refletir. No original, o título On peut se dire au revoir plusieurs fois não nos remete propriamente à noção do "adeus". O "revoir" da expressão francesa envolve um desejo de "rever" em breve a quem amamos. Quem vai partir diz um "até mais ver" e não um "adeus" definitivo.

Por outro lado, o "adeus" no título traduzido em português, além da rima adeus/vez, que soa bem, remete a... Deus. Muito discreto, o autor, com relação ao tema religioso (um ceticismo de fundo está presente), ouve-se porém uma música ao longe. Nota-se, enfim, que os preparativos para a partida de David têm um horizonte cheio de esperança para além do colapso físico.

sábado, 8 de outubro de 2011

Steve gostava de antever

No dia 5 de outubro, ao saber que Steve Jobs acabara de falecer, comprei O mundo segundo Steve Jobs (Campus, 2011). Essa coletânea de frases, a cargo de George Beahm, mostra como "funcionava" a cabeça deste visionário.

Suas palavras numa palestra para estudantes, em 2005, revelam sua visão a respeito da morte. Ele a via como uma invenção da vida. A vida é inovadora e renovadora. A consciência de que morrer é inevitável pode se tornar fonte de ideias e decisões.

O câncer raro não se manifestou à toa. Um homem incomum, obcecado pelo trabalho, intolerante com a preguiça, amante do ótimo, apaixonado pela qualidade, perseguidor da perfeição, atraído pelas mudanças revolucionárias, vivendo situações-limite, antevendo tudo... tinha de atrair um câncer raro. E câncer no pâncreas, que, do ponto de vista biológico e simbólico, é o órgão que libera toda a energia necessária para que possamos levar o irrealizado ao realizado.

A nossa força é a nossa fraqueza. Steve Jobs tinha muita energia, sabia disso e o dizia com palavras e ações. Muita energia, muita imaginação. Provenientes do pâncreas e do olhar. A certeza da morte é impulso para gastar todas as energias. Todas.

A morte "depura os sistemas, eliminando os antigos modelos obsoletos" (pág. 53). O pâncreas é indispensável à digestão, contribuindo para transformar alimentos em substâncias que darão energia ao corpo. A morte se faz vida. Mas a vida material se esgota. As ideias nascem, brilham, voam, e deixam para trás o corpo em que nasceram.

Steve Jobs não cultivava ilusões. Sabia, por exemplo, que o excesso de informações distribuído pela Web se perde por falta de visão e de leitura, por falta da prática do pensamento. Por isso, talvez, afirmou que trocaria toda a sua tecnologia "por uma tarde com Sócrates" (pág. 83), com quem travaria um diálogo cheio de perguntas e perplexidade.

domingo, 2 de outubro de 2011

Doses de Nietzsche

Entre o pensamento hermético e o diluído, entre o pensamento rarefeito e o banalizado, é possível encontrar reflexão profunda e alcançável, algo sutil e concreto.

É o caso de Nietzsche para estressados, de Allan Percy (Editora Sextante, 2011). Divulgação filosófica na esteira de Lou Marinoff, que recomendou doses de Platão em lugar de Prozac. Autoajuda qualificada.

São 99 doses de filosofia para que os preocupados, assustados, queixosos, ressentidos pensem melhor. Nada do outro mundo. Às vezes beirando o simplismo. Nietzsche talvez ficasse estressado lendo este livrinho. Mas talvez risse, quem sabe?

Afinal, na página 57, Allan Percy atribui a Nietzsche a certeza de que sorrir e estar bem-humorado são terapêuticos: regulam a pressão arterial, reforçam as defesas do corpo contra doenças, aliviam a fadiga, ajudam a relativizar os problemas...



domingo, 25 de setembro de 2011

Revistas que desbancam

Há revistas que desbancam, ultrapassam nossa expectativa, extrapolam. Vejo nas bancas duas revistas assim, nascentes, Metáfora e Quanta. Lançamentos da Editora Segmento.

Na Metáfora, um dos artigos mostra escritores que previram descobertas científicas: "A ciência dos escritores", assinado por Luiz Costa Pereira Jr.

Por exemplo, o escritor irlandês Jonatham Swift descreve em As viagens de Gulliver, no século XVIII, o mal de Alzheimer, que alguns biógrafos afirmam ter sido a doença que matou o próprio Swift.

E na Quanta, outro Luiz, o biólogo Luiz Caldeira Brant de Tolentino Neto, escreve "A superação das metáforas", analisando a relação entre linguagem e modelos de explicação científica.

As duas publicações começam juntas seu caminho. Paralelas, dialogam entre si. Que tenham longa vida entre um número crescente de leitores!

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Um monge realista

Já li alguns livros do beneditino Anselm Grün, um monge alemão realista. Nasceu em 1945. É doutor em teologia e leitor perspicaz de Jung.

Conselheiro espiritual, palestrante, um dos melhores escritores católicos do nosso tempo, fala sobre autoconhecimento, solidão, sofrimento, morte, virtudes, sempre com uma serena alegria.

Não é leitura simples... mas não é complicada! Grün consegue traduzir sua experiência monástica para a realidade das ruas, das casas, dos nossos compromissos cotidianos. Seu conhecimento da mística tradicional do ocidente joga luzes desconcertantes sobre nossas preocupações, sobre os problemas de hoje.

Um de seus livros mais interessantes é O ser fragmentado: da cisão à integração (Idéias & Letras), lançado em 2006, e já na 6ª edição. Em que faz uma reflexão sobre os tipos de fragmentação que sofremos e os modos de, convivendo com a sombra, superar impasses e depressões.


Um trecho da página 66 — Lidar criativamente com a própria sombra torna-a frutífera. A criatividade tem a ver com confiança e liberdade. Aquele que quer, medrosamente, manter sua sombra presa, será dominado por ela. Aquele que souber administrá-la criativamente poderá mantê-la como fonte de inspiração e de espiritualidade.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Ler é pouco... livro come-se!

O escritor espanhol Miguel de Unamuno (1864-1936) dizia que lê bem quem come o livro. Comer os livros de Unamuno é um banquete. Unamuno radical, dramático, etimológico, republicano, ensimesmado, angustiado e agostiniano, cristão e herege, acadêmico e ficcionista, cronicamente crítico, existencialista e existencialmente exilado, quixotesco e chicoteador das palavras. Paradoxal em seus monodiálogos!

De Unamuno acaba de ser publicado Como escrever um romance (Realizações Editora, 2011), com essas características todas e mais algumas. Um (im)puro Unamuno para comer em língua portuguesa. Considerações, invenções, confissões... Que ninguém espere um livro bem-comportado!

Um aperitivo só, retirado da página 127:

E eu quero lhe contar, leitor, como escrever um romance, como se escreve e há de escrever você mesmo seu próprio romance. O homem interior, o intra-homem, quando se torna leitor, contemplador, se é um ser vivente há de se tornar leitor, contemplador do personagem que ele está ao mesmo tempo lendo, escrevendo, criando — contemplador de sua própria obra.

sábado, 20 de agosto de 2011

Ateísmo teológico

Chamativo o interesse que os ateus sentem por Deus. Ninguém escreve sobre assunto que não o incomode ou atraia. Acabo de ler O debate sobre Deus: razão, fé e revolução, de Terry Eagleton (Nova Fronteira, 2011). Muito esclarecedor. Talvez até consiga despertar a fé religiosa (e/ou marxista) de alguns leitores.

É conhecida aquela brincadeira de Ferreira Gullar. Que ele entendeu e aderiu ao marxismo ao ler um livro escrito por um padre católico, em cuja primeira parte se expunha com clareza a doutrina marxista. A intenção do autor era condenar o pensamento de Marx na segunda parte do livro, mas antes cabia explicar o condenável. Gullar só leu a primeira parte... e aderiu ao marxismo graças à honestidade intelectual do padre.

Terry Eagleton, citando Tomás de Aquino, condena as críticas ateístas que não entendem o que há de revolucionário no cristianismo. E não foge ao diálogo inteligente com a teologia, para a qual migraram, diz ele, discussões animadas envolvendo temas relevantes e autores como Heidegger, Foucault, Deleuze e o próprio Marx...

Há passagens inspiradoras neste livro. Numa delas, Eagleton denuncia o otimismo patológico do que restou do sonho norte-americano: "o céu é o limite", "nunca diga nunca", "querer é poder", "nós podemos"... Isso, deduzo, em contraste com a fé e o otimismo cristãos, que nos ensinam a lidar com o despojamento, o fracasso e a morte.

Noutro momento, esse trecho (págs. 127-8):

O racionalista tende a confundir a tenacidade da fé (a fé de terceiros, pelo menos) com a teimosia irracional, em lugar de vê-la como o sinal de certa profundidade interior, que abrange a razão, mas também a transcende.

domingo, 14 de agosto de 2011

Leitura lenta... não sonolenta!

A pressa é uma doença. Pressionados pela pressa, olhamos a leitura, talvez, como perda de tempo. A pressa nos oferece a sensação de estarmos vivos. No entanto... quem lê ganha tempo, sim: tempo de experiência, tempo de aprofundamento, tempo de visão, tempo de compreensão. Leitura sem pressa é regresso ao essencial.

O prazer é uma dessas coisas essenciais. O prazer da leitura lenta, não sonolenta — leitura feita com o pensamento, polimento das ideias, das imagens, das palavras —, é prazer de perfazer, fazer bem, de cabo a rabo.

Corra até a livraria e compre Slow reading, de John Miedema, pela Editora Octavo (2011). Depois, desacelere, reflita durante a leitura. Não é preciso ser muuuuuito leeeento, quase paraaaaaando. Basta concentrar-se e respirar junto com o texto.

A capa da edição brasileira transmite serenidade — as duas irmãs e o livro. A cabeça inclinada da detrás, repousando sobre as mãos, que repousam sobre o espaldar da cadeira. A irmã sentada está mergulhada na página.

Já a capa da edição original radicaliza, lança mão da hipérbole e faz o elogio da lerdeza. Cada capa dá uma cara para o conteúdo.

A leitura lenta começa com a leitura da capa. Sem pressa, observe a capa, leia a capa, interprete-a. Então... entre no livro. Respire fundo. O livro é um mundo. No caso, temos aqui páginas inspiradoras, inteligentes, em que o autor dialoga com a Idade Mídia sem medo e sem rancores. Uma coisa não elimina a outra. Leitura vai, vem, vai bem, devagar e sempre!

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Leminski — seus ensaios ansiosos

A Editora da Unicamp faz circular de novo textos excelentes de Paulo Leminski (1944-1989). São estes Ensaios e anseios crípticos (2011). Saíam em jornais e revistas. E quem os lia? Ou quem os lê? Leminski observava que escrever em português é viver no exílio.

Conta-se que o escritor espanhol Miguel de Unamuno aprendeu dinamarquês para ler Søren Kierkegaard no original. Que Marx estudou a língua russa para ler no original as obras de literatura que espelhavam as relações sociais naquele país. O escritor carioca Alberto Mussa estudou árabe para ler poesia pré-islâmica no original. Mas... e o português, quem vai correr atrás?

Leminski, no livro, lembra que Ezra Pound aprendeu português para ler Os Lusíadas no original. E que (segundo a lenda...) Erasmo de Rotterdam fez o mesmo para saborear Gil Vicente no original...

Quem adquirir esses anseios em forma de ensaios, leia a crônica "Os perigos da literatura", para descobrir doenças como o complexo de Castro Alves, o mal de Drummond, a síndrome de Borges, a paralisia Cabralina.

Literatura é doença das boas. Leminski traduzia. E acreditava ao mesmo tempo que toda tradução é uma impossibilidade. Seria esta a gripe Leminski?

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Consoantes, vogais, guerra e paz

A guerra entre as letras é inevitável. Há uma tensão entre a maioria (consoantes) e a minoria (vogais). Estas se revoltam. No universo letral existem armas letais. As palavras sofrem. Onde há guerra aumenta o desejo de paz.

Solano Guedes é o autor de A revolta das vogais, lançado pela Vieira & Lent, editora do Rio de Janeiro. Literatura infantil para adultos adulterados. Gostei da leveza, da coerência, da condução desta revolta.

Nem hermético nem simplista. Nem singelo nem exagerado. Sabe fazer o jogo narrativo. O alfabeto, a nova ortografia, o conhecimento linguístico, a Idade Mídia.

Entre mortos e feridos, nos alfabetizamos todos um pouco mais.

domingo, 17 de julho de 2011

Paralaxes para pensar

Ler autores difíceis e exigentes é uma forma de, não os entendendo em totalidade e com imediatez, ter uma noção mais clara do "perigo".

Slavoj Žižek desperta estranhezas, perplexidades. Como intrigante, para um leitor brasileiro, é esse "z" sobre o qual aparece um circunflexo de cabeça para baixo, "ž", no começo e no meio do sobrenome do filósofo esloveno. Este sinal diacrítico inexistente em português questiona os meus "alfabetismos"...

Juntar/articular o pensamento de Marx e o de Lacan é uma de suas principais estratégias de análise da conjuntura política, do comportamento humano, da cultura contemporânea.  A vivacidade e o nervosismo de Žižek, ao escrever, são inspiradores. Levam a uma certa vertigem. Ler seus textos é beber sucos exóticos.

As 500 páginas de A visão em paralaxe (Boitempo, 2008) puxam, levantam, empurram, fazem correr, fazem parar. A paralaxe consiste no deslocamento aparente de um objeto quando o ponto de observação é alterado. Então, Žižek me leva a observar as mesmas coisas de outros modos.

Exemplo? Pensemos no polvo. O que o animal polvo simboliza. Em termos de metáfora política típica do século passado, o polvo e seus tentáculos falam do sistema capitalista que espreme e sufoca os trabalhadores. Em termos religiosos, Pe. Antônio Vieira via no molusco a imagem do traidor, do próprio Judas.
É possível, alterando o ponto de observação, procurando colocar-se numa outra atitude, deslocar a imagem do polvo e reinterpretá-la de um modo, digamos, mais positivo? O polvo simbolizando eficiência no trabalho (oito tarefas ao mesmo tempo com seus oito braços), ou abertura para novos trajetos (oito pés agora)?

sábado, 18 de junho de 2011

Pontuação em luta

Christian Morgenstern (1871-1914) escreveu No reino da pontuação (Berlendis & Vertecchia, 2010), um poema sobre conflitos entre vírgulas, pontos de interrogação, pontos-e-vírgulas, travessões... uma guerra sem ponto final! De tirar o fôlego de qualquer leitor...

Vírgulas com cabeças cortadas, sangue nas páginas, crueldades impontuais, o hífen valentão brigando sem parar, o cemitério cheio de sinais, o ponto exclamando seus ais!

A tradução é de Tetê Knecht. As ilustrações são de Rathna Ramanathan. Belo trabalho das duas artistas.

E o confronto é mesmo inevitável! Escrever, pontuar, é aquela luta de sempre. Na sintaxe das batalhas, todos deveriam abandonar as reticências! Presos entre parênteses, precisamos resistir!

sábado, 4 de junho de 2011

Não adotar... mas adaptar!

A questão dos estrangeirismos está sempre viva. Recentemente, um professor me dizia que o termo (tobully (palavra do momento, pauta constante, tema de palestras em escolas), deveria ser substituído pelo nosso verbo "bulir", que no dicionário significa "caçoar", "brincar", "zombar".

De fato, não precisamos adotar palavras estrangeiras. No caso, tenho ouvido cada vez mais as pessoas pronunciarem "buli" em lugar de bullying (ouça aqui a pronúncia em inglês). Os falantes em geral não adotam. Acabam adaptando, transformando.

Um livro de Cândido de Figueiredo (1846-1925), do início do século passado (tenho a quarta edição, de 1923), intitulada Os estrangeirismos, defendia que alguns são imprescindíveis, que outros são convenientes, outros podem ser toleráveis, mas que muitos estrangeirismos deveriam ser condenados e evitados, em nome da pureza da língua.

A pureza da língua para o prestigioso filólogo português era um valor que no Brasil também se defendia naqueles tempos. Mas lembremos da Semana de 1922 e de tudo o que se pensou e se fez em nome de um possível português brasileiro, menos puro, e mais real, mais comunicativo!

Nesse Os estrangeirismos há curiosidades, como estas (pág. 45):

— "O menu era o seguinte..." —

Repugnou-me sempre, como é natural, aquela designação francesa da lista de pratos de um banquete; mas realmente inda não descobri coisa que a possa substituir com evidente e completo aprazimento meu e de quantos desejariam vêr a nossa língua expurgada de todas as francesias inúteis e desconchavadas. Eu já propus modèstamente lista de pratos, e até a simples palavra jantar ou banquete, para encimar uma lista de iguarias; mas tenho a convicção de que é proposta ao vento. Uma plêiade de escritores novos já em tempos sugeriu ementa, derivado do verbo ementar; mas a sugestão não vingou em frutos, se bem que inda há pouco eu li o termo, sobrepôsto á lista do banquete celebrado em honra do Congresso Colonial.

No Brasil, especialmente nos Estados do Sul, está sendo adoptada, em vez de menu, a palavra cardápio, criação arbitrária do velho Dr. Castro Lopes, sôbre o latim caro + daps. Como os Brasileiros, honra lhes seja feita, — detestam mais os galicismos do que nós, — aceitam ás vezes neologismos extravagantes, que em Portugal dariam tema a caricaturas e gazetilhas. O cardápio é um dos tais. Não creio que êle vingue entre nós, nem realmente lhe descubro direitos a isso.

Numa publicação da Parábola Editorial, Estrangeirismos — guerras em torno da língua (de 2001, organizada por Carlos Alberto Faraco), Marcos Bagno menciona Cândido Figueiredo como um dos tantos defensores apocalípticos da pureza do idioma, e escreve para tranquilizar a todos os que temem a invasão de palavras estrangeiras (págs. 74-5):

[...] os estrangeirismos não alteram as estruturas da língua, a sua gramática. Por isso, não são capazes de destruí-la, como juram os conservadores. [...] nossa pronúncia dessas palavras estrangeiras se faz de acordo com as características fonético-fonológicas do português brasileiro, ou seja, elas são tratadas foneticamente como se não fossem estrangeiras. É bem provável que a palavra e-mail pronunciada à brasileira — [i-mey-yu], trissílaba — seja irreconhecível para um falante nativo de inglês, que a pronuncia [i-mèl], dissílaba. Pode ser que daqui a pouco tempo, quando a coisa a que se refere deixar de ser uma novidade, o vocábulo já apareça escrito imeio ou imêiu e não seja mais percebido como um estrangeirismo, exatamente como aconteceu com sinuca (> snooker), panqueca (> pancake), e maxambomba ( > machine-pump).

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Conversas com Chico dos Bonecos

Quem o conhece não esquece. Chico dos Bonecos é poeta, brincador de ideias, entusiasta. De um de seus livros, Muitos dedos: enredos (Editora Peirópolis, 2005), escolho esse pensamento: "Na educação, na arte, na vida, o importante, mesmo!, é beber dos imprevistos".

O que importa, no "comércio" dialogal, dialético, da vida, é exportar palavras boas e importar boas palavras. Jogar conversa dentro. Dentro de nossa cabeça, dentro do nosso coração.

Outro livro do Chico (seu nome de batismo é Francisco Marques) — Desvendério (Editora Peirópolis, 2006). Com ilustrações de Carlos Dala Stella. A arte de contar uma história, preparar o leitor/ouvinte (pág. 55):

[..] Os fatos que serão narrados não aconteceram comigo. Tudo que vocês vão ouvir gudir foi contado de gurrunfado, ponto por ponto de maracutonto, pela querida vovó Maria xiringabutia. Estou, portanto, apenas recontando, passando adiante, sempre chaleirando o momentoso provérbio: Quem conta um conto omite um ponto e aumenta três.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Saldão à francesa

Na semana passada, soube que a unidade da Livraria Francesa na Vila Olímpia (SP) iria encerrar suas atividades em breve. E vai mesmo. No próximo dia 28 de junho.
Até lá, grande liquidação. Promoções incríveis. Não será uma saída à francesa, mas um saldão à francesa.  Descontos de até 80%.
Fui conferir e verificar. Comprei alguns livros. Entre eles, três:

Éloge du quotidien, de Tzvetan Todorov. Publicado em 1997. Não foi traduzido. O que é compreensível.

Trata-se de um "ensaio sobre a pintura holandesa do século XVII". Este subtítulo talvez assuste. A obra requer leitores que, pela própria natureza do tema, provavelmente poderão ler este ensaio em francês, ou em outro idioma. Os editores brasileiros não se arriscariam a colocar em nosso mercado um produto desses. Um pouco erudito ou específico demais...

Outro livro: Vers une économie politique élargie. Não o temos em português. A obra foi traduzida do inglês para o francês pelo próprio autor. Publicada em 1986.

O autor, Albert Hirschman, explora a antinomia "exit / voice" para analisar várias questões que envolvem busca de equilíbrio e reequilíbrio em sistemas econômicos, sociais e políticos. Ou mesmo numa questão mais caseira, digamos, como o divórcio. Num casamento em crise, a saída é "cair fora" (exit) ou conversar, "colocar as cartas na mesa" (voice)?
O terceiro livro: Le crépuscule des illusions, de 2002. Georges Gusdorf faleceu em 2000. Querer ler suas memórias "intempestivas" supõe interesses anexos, pois o autor não foi terrorista, artista ou esportista...

É necessário ter interesse pela cultura francesa. E por uma série de problemas e um certo modo de abordá-los que poderiam ser considerados ultrapassados.

Possivelmente não compraria esses livros se não fosse pelo desconto. A oportunidade é interessante. E para quem gosta de filosofia há muitos títulos disponíveis, no segundo andar da loja.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Conhecer, interpretar e mudar

Retrato da autoria
de Fernando Vicente,
ilustrador espanhol
O livro O mal ronda a terra (Objetiva, 2011), do historiador e escritor britânico Tony Judt (1948-2010), associa o título assustador a uma espantosa lucidez de seu autor, recentemente falecido.

Surpreendeu-me o tom do livro. Há informações sobre a realidade econômica do ocidente que não frequentam as páginas dos jornais. E uma visão crítica com relação a valores dominantes que conduziram a Europa e os EUA a uma situação social, hoje, problemática e preocupante.

Algo de filosofia o livro tem. Uma insatisfação boa, que fala em conhecer, interpretar, mas também em trabalhar para mudar. É o que percebo neste trecho (pág. 48):

Uma pesquisa entre estudantes ingleses realizada em 1949 mostrou que quanto mais inteligente o aluno fosse, mais tendência tinha a escolher uma carreira interessante, com salários razoáveis, em vez de um emprego que simplesmente lhe pagaria bem. Os estudantes e universitários de hoje conseguem imaginar poucas opções além de buscar um emprego lucrativo.

sábado, 7 de maio de 2011

Autoajuda qualificada

O gênero autoajuda é visto por muitos como subliteratura que induz ao autoengano. A leitura desse tipo de textos  nos convenceria a tomar consciência de que possuímos recursos mentais e morais de sobra para alcançar objetivos de vida e vencer dificuldades psicológicas, profissionais, existenciais etc. E que só nos falta um empurrãozinho para chegar lá!

Existe, porém, uma autoajuda qualificada. O autor catalão Xavier Guix (1952 - ) trabalha com uma bibliografia confiável — Jung, Viktor Frankl, Bauman, Compte-Sponville, Julián Marías, Eugenio Trías, Karl Jaspers, Mirce Eliade... enfim, não se trata de um "facilitador"...

Suas leituras, sua experiência como terapeuta e sua trajetória existencial ligada ao mundo da arte conferem ao seus textos um tom humanista e acessível, mas profundo.

Vejam três livros deste autor publicados em português, pela Editora Ciranda Cultural, em 2008:


Um trecho de Viva melhor (págs. 38-39):

É difícil viver com medo. Nada paralisa mais uma existência que o medo. Só se pode assumi-lo quanto cumpre sua função de advertência, por isso Norberto Levy o chama de funcional. Esse médico psicoterapeuta, defensor da dignidade do medo, define-o como um precioso sinal que indica um desequilíbrio entre a ameaça (física ou emocional) que enfrentamos e os recursos que temos para resolvê-la.

No entanto, a nossa confusão e ignorância fizeram dele "uma emoção negativa" que deve ser eliminada. Levy propõe abordar os códigos que se escondem por trás do medo, em vez de apagá-los ou afogá-los na repressão.

sábado, 30 de abril de 2011

Ler para indignar-se

Quem não se indigna com nada... perdeu a dignidade. Uma primeira ideia, depois de ler o brevíssimo manifesto pessoal de Stéphane Hessel, atualmente com 93 anos! Chegou às livrarias recentemente. A capa vermelha. O ponto de exclamação.

Lançado na França em outubro de 2010, já foi traduzido para inúmeros idiomas. Chegou ao Brasil. Publicado pela Texto Editores, do grupo Leya.
Leiamos então. O autor escreve com simplicidade e força: "Minha longa vida deu-me uma sucessão de motivos para me indignar." (pág. 18)

E recomenda que os jovens saiam um pouco de si mesmos, e olhem ao seu redor. Quem procura motivos para sair da indiferença moral, é porque conhece o valor da dignidade humana. E ficará indignado.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Canibalismo literário

Um livro estranho, de Nestor de Holanda (1921-1970), jornalista e escritor pernambucano: Seja você um canibal. Há um título alternativo conexo: Aprenda a comer os amigos e os inimigos. Da Editora Letras e Artes, publicado em 1964.

O autor ainda pensou em outro título, A antropofagia ao alcance de todos. Os textos são de humor, envolvendo assuntos e personagens que estavam em evidência na época: Garrincha, Carlos Lacerda, Filinto Müller, Juraci Magalhães, Aliomar Baleeiro... Receitas para devorá-los. A distância no tempo e o contexto esquecido diminuem a chance de alguém, hoje, achar graça na leitura.

Contudo, um ou outro texto está mais próximo de nós. Por exemplo, quando se refere a Juscelino Kubitschek, às suas constantes viagens, e à construção de Brasília. Recomenda que o ex-presidente fosse saboreado na forma de Salada de Peixe Vivo. Vale lembrar: a canção Peixe Vivo, de que Juscelino gostava muito, era uma espécie de hino com que o povo o saudava. As 300 mil pessoas que estavam no seu funeral, em 1976, despediram-se do político com essa canção.

Transcrevo, respeitando a ortografia de 1964:

JUSCELINO KUBITSCHEK
Salada de Peixe Vivo

Misture o Peixe Vivo com batatas cozidas e môlho de maionese.

A arrumação no prato deve seguir o estilo arquitetônico de Oscar Niemeyer. As fôlhas de alface, em feixe, ao centro, lembrando a Catedral e o Senado. As batatas devem rodear o Peixe Vivo, cortadas em curvas, com as pontas para cima, como a fachada do Palácio Alvorada.

Fica um prato simpático.

Jogando, por cima, boa quantidade de polvilho, dá idéia de poeira do Distrito Federal, o que torna a decoração mais a caráter.

Difícil, apenas, é encontrar o peixe, no meio de tudo. Êle está sempre ausente do prato. Porque é peixe voador, e, como a Felicidade de Vicente de Carvalho, "está sempre, apenas, onde o pomos e nunca o pomos onde nós estamos"...

De qualquer maneira, a Salada de Peixe Vivo agrada à vista. E muita gente a prefere talvez por ilusão de óptica...

Um escritor de hoje poderia retomar a ideia canibalista e preparar alguns pratos atualizados. Seria um banquete e tanto! Algumas sugestões para quem tiver talento culinário-literário: um Lula cremoso, Marina ao molho verde, Aécio ao vinho, um FHC em pedaços, Bolsonaro à nazi, Alckmin com chuchu etc.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Leituras educadoras com Todorov

O título original não era esse, A beleza salvará o mundo. Era Les aventuriers de l'absolu. O tradutor, Caio Meira, ajudou Tzvetan Todorov (1939 -) com essa solução brasileira.

O livro foi publicado entre nós este ano (pela Difel). São ensaios sobre Oscar Wilde, Rilke e a poeta russa Marina Tsvetaeva (ou Tsvetáieva), e sobre o tema do absoluto.


Todorov está em sua melhor forma. A literatura é leitura educadora. A leitura é aventura. Mais uma das tantas "turas" de que falava Julio Cortázar. Aliás, o autor argentino dizia que a beleza era a tura das turas. Lemos para aprender, em meio à dor e à alegria, surpreendendo-nos, exigindo-nos.

Todos os tempos são difíceis. (E, a seu modo, belos.) Todos enfrentam problemas e carecem do absoluto. A arte é sempre necessária. Esses autores, diz Todorov, "e muitos outros ajudam a cada um de nós a melhor pensar e dirigir sua existência". (pág. 325)