sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Ler é pouco... livro come-se!

O escritor espanhol Miguel de Unamuno (1864-1936) dizia que lê bem quem come o livro. Comer os livros de Unamuno é um banquete. Unamuno radical, dramático, etimológico, republicano, ensimesmado, angustiado e agostiniano, cristão e herege, acadêmico e ficcionista, cronicamente crítico, existencialista e existencialmente exilado, quixotesco e chicoteador das palavras. Paradoxal em seus monodiálogos!

De Unamuno acaba de ser publicado Como escrever um romance (Realizações Editora, 2011), com essas características todas e mais algumas. Um (im)puro Unamuno para comer em língua portuguesa. Considerações, invenções, confissões... Que ninguém espere um livro bem-comportado!

Um aperitivo só, retirado da página 127:

E eu quero lhe contar, leitor, como escrever um romance, como se escreve e há de escrever você mesmo seu próprio romance. O homem interior, o intra-homem, quando se torna leitor, contemplador, se é um ser vivente há de se tornar leitor, contemplador do personagem que ele está ao mesmo tempo lendo, escrevendo, criando — contemplador de sua própria obra.

sábado, 20 de agosto de 2011

Ateísmo teológico

Chamativo o interesse que os ateus sentem por Deus. Ninguém escreve sobre assunto que não o incomode ou atraia. Acabo de ler O debate sobre Deus: razão, fé e revolução, de Terry Eagleton (Nova Fronteira, 2011). Muito esclarecedor. Talvez até consiga despertar a fé religiosa (e/ou marxista) de alguns leitores.

É conhecida aquela brincadeira de Ferreira Gullar. Que ele entendeu e aderiu ao marxismo ao ler um livro escrito por um padre católico, em cuja primeira parte se expunha com clareza a doutrina marxista. A intenção do autor era condenar o pensamento de Marx na segunda parte do livro, mas antes cabia explicar o condenável. Gullar só leu a primeira parte... e aderiu ao marxismo graças à honestidade intelectual do padre.

Terry Eagleton, citando Tomás de Aquino, condena as críticas ateístas que não entendem o que há de revolucionário no cristianismo. E não foge ao diálogo inteligente com a teologia, para a qual migraram, diz ele, discussões animadas envolvendo temas relevantes e autores como Heidegger, Foucault, Deleuze e o próprio Marx...

Há passagens inspiradoras neste livro. Numa delas, Eagleton denuncia o otimismo patológico do que restou do sonho norte-americano: "o céu é o limite", "nunca diga nunca", "querer é poder", "nós podemos"... Isso, deduzo, em contraste com a fé e o otimismo cristãos, que nos ensinam a lidar com o despojamento, o fracasso e a morte.

Noutro momento, esse trecho (págs. 127-8):

O racionalista tende a confundir a tenacidade da fé (a fé de terceiros, pelo menos) com a teimosia irracional, em lugar de vê-la como o sinal de certa profundidade interior, que abrange a razão, mas também a transcende.

domingo, 14 de agosto de 2011

Leitura lenta... não sonolenta!

A pressa é uma doença. Pressionados pela pressa, olhamos a leitura, talvez, como perda de tempo. A pressa nos oferece a sensação de estarmos vivos. No entanto... quem lê ganha tempo, sim: tempo de experiência, tempo de aprofundamento, tempo de visão, tempo de compreensão. Leitura sem pressa é regresso ao essencial.

O prazer é uma dessas coisas essenciais. O prazer da leitura lenta, não sonolenta — leitura feita com o pensamento, polimento das ideias, das imagens, das palavras —, é prazer de perfazer, fazer bem, de cabo a rabo.

Corra até a livraria e compre Slow reading, de John Miedema, pela Editora Octavo (2011). Depois, desacelere, reflita durante a leitura. Não é preciso ser muuuuuito leeeento, quase paraaaaaando. Basta concentrar-se e respirar junto com o texto.

A capa da edição brasileira transmite serenidade — as duas irmãs e o livro. A cabeça inclinada da detrás, repousando sobre as mãos, que repousam sobre o espaldar da cadeira. A irmã sentada está mergulhada na página.

Já a capa da edição original radicaliza, lança mão da hipérbole e faz o elogio da lerdeza. Cada capa dá uma cara para o conteúdo.

A leitura lenta começa com a leitura da capa. Sem pressa, observe a capa, leia a capa, interprete-a. Então... entre no livro. Respire fundo. O livro é um mundo. No caso, temos aqui páginas inspiradoras, inteligentes, em que o autor dialoga com a Idade Mídia sem medo e sem rancores. Uma coisa não elimina a outra. Leitura vai, vem, vai bem, devagar e sempre!

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Leminski — seus ensaios ansiosos

A Editora da Unicamp faz circular de novo textos excelentes de Paulo Leminski (1944-1989). São estes Ensaios e anseios crípticos (2011). Saíam em jornais e revistas. E quem os lia? Ou quem os lê? Leminski observava que escrever em português é viver no exílio.

Conta-se que o escritor espanhol Miguel de Unamuno aprendeu dinamarquês para ler Søren Kierkegaard no original. Que Marx estudou a língua russa para ler no original as obras de literatura que espelhavam as relações sociais naquele país. O escritor carioca Alberto Mussa estudou árabe para ler poesia pré-islâmica no original. Mas... e o português, quem vai correr atrás?

Leminski, no livro, lembra que Ezra Pound aprendeu português para ler Os Lusíadas no original. E que (segundo a lenda...) Erasmo de Rotterdam fez o mesmo para saborear Gil Vicente no original...

Quem adquirir esses anseios em forma de ensaios, leia a crônica "Os perigos da literatura", para descobrir doenças como o complexo de Castro Alves, o mal de Drummond, a síndrome de Borges, a paralisia Cabralina.

Literatura é doença das boas. Leminski traduzia. E acreditava ao mesmo tempo que toda tradução é uma impossibilidade. Seria esta a gripe Leminski?

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Consoantes, vogais, guerra e paz

A guerra entre as letras é inevitável. Há uma tensão entre a maioria (consoantes) e a minoria (vogais). Estas se revoltam. No universo letral existem armas letais. As palavras sofrem. Onde há guerra aumenta o desejo de paz.

Solano Guedes é o autor de A revolta das vogais, lançado pela Vieira & Lent, editora do Rio de Janeiro. Literatura infantil para adultos adulterados. Gostei da leveza, da coerência, da condução desta revolta.

Nem hermético nem simplista. Nem singelo nem exagerado. Sabe fazer o jogo narrativo. O alfabeto, a nova ortografia, o conhecimento linguístico, a Idade Mídia.

Entre mortos e feridos, nos alfabetizamos todos um pouco mais.