terça-feira, 11 de março de 2014

Uma calma, uma alma

O escritor Rodrigo Naves navega mais pelos mares das artes plásticas. Este é seu trunfo. E é professor. Sua ficção se produz com atenção e cuidado e me transmite esse tom quase professoral. Nota-se isso. Mas A calma dos dias (Cia. das Letras, 2014), recém-lançado, pode nos inquietar.

Seus contos, prosas curtas e densas, meio tensas, apesar da aparente calma do dia a dia. E há poesia disfarçada, como este verso perdido dentro de um miniconto ("Horário de verão"): "Trata-se do período do ano em que as manhãs ocorrem duas vezes". Parece banal. Contudo, insinua a necessidade da contemplação.

Gostei de ler "Foca", em que o narrador-protagonista sai de casa equilibrando o mundo na ponta do nariz. E no final do dia, ou da vida, faz essa pergunta que bem pode ser mote excelente para outras reflexões: "A quem sirvo quando me esqueço?"

E vou reler algumas vezes este conto, "Teoria do cão", até ficar mais calmo:

Jacobina era um mendigo do bairro a quem me afeiçoara havia muitos anos. Todos os dias trocávamos algumas palavras: conselhos recíprocos, novidades, palpites sobre o tempo. Dava-lhe dinheiro com regularidade, que ele aceitava quase como o pagamento de uma dívida. Ele vivia com Coronel, um vira-lata em cuja pelagem indefinida convergiam muitas linhagens de cães. O bicho não era dado a expansões, mas aos poucos cedeu a meus afagos. Jacobina e Coronel passavam o tempo todo juntos. À noite dormiam colados um ao outro, em meio ao ninho de papelão e cobertores baratos que os agasalhava.

A morte de Jacobina não me deixou escolha: levei Coronel para casa e procurei ocupar o lugar que o mendigo tivera em sua vida. O animal recusou-se terminantemente a dormir na área de serviço do apartamento: arranhava a porta, gania. Resolvi então arrumar sua cama ao pé da minha. Por uns dias ele aceitou a nova situação. Um dia, despertei com o cachorro a meu lado. E não houve jeito de reconduzi-lo ao lugar anterior.

O pior, porém, ainda estava por vir. Em pouco tempo Coronel teimou em voltar para o chão e não sossegou enquanto não lhe fizesse companhia. Soube responder estoicamente às novas circunstâncias e em poucos dias já me sentia à vontade na acomodação precária.

Poucos meses depois comecei a perceber mudanças no comportamento de meu companheiro. Sentia-o intranquilo, como se os limites de meu apartamento o oprimissem. O animal não tinha sossego e rodava pelos ambientes à procura de uma saída. Uma manhã, ao retornarmos do passeio matinal, mal pude contê-lo. Coronel queria voltar à rua de todo modo. Tornara-se até violento.


Não foi uma escolha fácil. Por fim cedi a seus apelos. Hoje vivemos sem nada, à mercê da caridade alheia. Tratamos com afeto aqueles que nos ajudam. Não me arrependo um só momento pela decisão tomada. Entendo o ar de compaixão dos homens e mulheres que zelam por nós. E nossas faces maltratadas pelo tempo quase não deixam transparecer o que sentimos por eles.

2 comentários:

  1. Deve ser como contemplar o quadro de uma paisagem que revela o que é real, e que leva a construir um mundo diferente....

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  2. Contemplando um quadro de paisagem que reflete uma realidade...

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