Apresentação do livro


Pensar é coisa de ociosos. Literalmente. A filósofa Hannah Arendt martelava a ideia desde o dia em que viu o julgamento de um mandatário nazista. Firme, inabalável, ladainha mecânica a justificar como óbvios seus atos realizados segundo procedimentos protocolares, parecia indefeso, no entanto, até mesmo encolhido e frágil ao discutir os efeitos perversos das ordens que seguiu, e que levaram ao massacre de milhares de prisioneiros em campos de concentração na Segunda Guerra Mundial. Arendt esperava encontrar no tribunal o retrato de um monstro desumano e pérfido, mas o que encontrou foi apenas uma pessoa banal, como outra qualquer. E cogitou se, no fundo, não haveria na prática aquilo a que nos acostumamos chamar de mal, o mal em si endemonizado por séculos de pregação religiosa ocidental, coisa ruim por natureza e vocação.

Hannah Arendt, então, passou a assombrar-se com a frequência com que pessoas de capacidade intelectual, refinada formação cultural e ávidas leitoras protagonizavam ações condenáveis, não por serem apenas más, mas simplesmente por criarem para si hábitos pétreos de pensamento e de conduta de vida, que as faziam agir de forma automática e irrefletida. Agiam como agiam muitas vezes por não terem o hábito de parar e pensar no que fazem no momento em que fazem. Para bem pensar é preciso antes de tudo parar para pensar. E isso só se torna hábito se o sujeito encontra genuíno prazer nos caminhos que o pensamento leva.

Assim é com o hábito de ler. Muitos veem na leitura uma perda de tempo. Têm razão: a arte é inútil, já dizia Paulo Leminski. Não serve para nada além do prazer que dá. Como pensar, ler ainda por cima dá trabalho — é preciso parar tudo e alienar-se do mundo para que a relação com o texto se estabeleça. Além do mais, ler vicia. Porque se torna uma espécie de droga a que ficamos dependentes porque simplesmente nos dá prazer.

Ainda mais evidente é com o ato de escrita. Não há receita, não há fôrma nem mágica que faça alguém virar escritor da noite para o dia. Escrever, como pensar e ler, dá trabalho. Mas também vicia. E vicia porque dá prazer.

O prazer de ler, escrever e pensar potencializa o ser. Ler só nos melhora se pensamos. Escrever só é pensamento se é também uma leitura do mundo. É isso o que Gabriel Perissé equaciona numa obra preciosa e, acima de tudo, prazerosa. Nesta atualização ampliada de um livro já memorável em sua primeira versão, o autor nos propõe, não a análise de três áreas estanques e sem diálogo entre si, mas federadas pelo prazer que cada uma potencializa. A história do pensamento ocidental colecionou inúmeros argumentos a favor do divórcio entre prazer e reflexão — como se à frente de todo mundo houvesse sempre uma escolha entre duas impossibilidades, diz Michel Onfray: uma vida de prazer sem reflexão e uma vida de reflexão sem prazer. Perissé sabe que quem gosta de ler não se quer isolado, quem escreve quer compartilhar e quem pensa quer expressar. E só fará benfeito quem, como ele, mergulha de maneira genuína em cada um desses estados do ser (o mesmo ser que escreve, lê e pensa).

Quem o conhece sabe a máquina criativa que ele é, quanto deve consumir de tempo para fisgar um ângulo inusitado, sedutor, ao abordar um tema; quanto capricha na preparação para trazer sempre uma informação singular a quem não a tem; quanto transforma cada texto, aula, palestra ou situação comunicativa em sistemática afirmação da vida. Ninguém produz tanto e a tanta velocidade, com tamanha qualidade, sem ver em cada tarefa um ato de prazer autêntico — e de vontade de compartilhar. Essa alegria, genuína e terna, é talvez sua grande orientação argumentativa, talvez sua utopia particular. Afinal, como diria Drummond, que tristes são as coisas consideradas sem ênfase. Nietzsche poderia muito bem completar: se a tudo o que fazemos o fazemos com ênfase, todo dia será o eterno retorno de um prazer.

Perissé vive a ênfase. Sabe que o melhor escritor não é sempre o que sabe o que fazer antes de chegar ao papel. Que o melhor leitor não é o que vai ao texto apenas para reafirmar o que já pensa. E o melhor pensador não é o que segue a receita geral, achando que é receituário próprio. O que torna especial cada um desses estados do ser é essa ênfase drummondiana. É isso o que vamos descortinar nestas páginas tão cuidadas pelo autor. Ler é uma forma de pensar. Escrever é a outra face do ler. E pensar é um jeito próprio de escrever. O mundo e a nós mesmos.

Luiz Costa Pereira Junior

Doutorando em Filosofia da Educação na Faculdade de Educação da USP. Criador e editor da revista Língua Portuguesa (desde 2005), autor dos livros A apuração da notícia (Vozes, 2006) e Guia para edição jornalística (Vozes, 2006), entre outros.